Alguns escritores imaginam a escrita como um navio solitário, com os ventos da liberdade estufando as velas na altura do umbigo.
Porém, se você deseja ser realmente lembrado, sinto te informar que essa liberdade é relativa.
No fundo, todo escritor é um escravo dos seus leitores.
Sim, estamos todos trancafiados em uma prisão, ainda que domiciliar e muitas vezes feliz.
A distância permitida para tal “caneteira eletrônica” é determinada pelos desejos do seu público.
Ultrapassar esse limite, pode resultar na pior das penas: não ser lido.
Como hoje não é mais necessário investir em estoque e lidar com encalhes, ainda assim pode-se acabar no limbo de uma categoria de e-books.
“O Festival do Amor”, último filme de Woody Allen, é mais uma tentativa do cinema de reforçar o estereótipo do escritor com o sonho de destronar Dostoiévski.
Para quê?
No fundo, já perdi a conta dos filmes e livros que falam do escritor que não escreve, justamente por causa de objetivo tão esdrúxulo.
É uma história velha, a da comparação entre o que foi escrito e o que precisa ser, entre um livro prestes a nascer e outros já paridos.
A verdade é que colocar tudo o que você escreve sobre o escrutínio do seu leitor cansa e desgasta a criatividade.
Me lembro quando trabalhava com direção de arte em uma agência de propaganda e o cliente muitas vezes ficava junto, ditando instruções como “aumenta o logo”, “dá uma escurecida nesse azul”.
Desta forma, sei que não é um miojo qualquer que vai satisfazer a avidez do seu leitor.
Porém, não deixar de satisfazê-lo é um erro tremendo.
Bioy Casares, em um artigo chamado “La Lucidez Absoluta”, conta sobre um encontro entre ele, Jorge Luís Borges e Silvina Ocampo para planejar uma história chamada “otro de los que nunca escribiríamos”.
Ela girava em torno de um personagem em busca da fama na literatura, que desenterra as obras de seu mestre, um monte de textos truncados, distantes, com cargas semelhantes de lugares-comuns e frieza.
Entre eles, há uma lista, com tudo a se evitar na literatura, com conselhos inócuos, como eliminar todo antropomorfismo, e outros impossíveis, como não usar metáforas.
Seguir tal lista significaria não escrever literatura alguma.
O fato é que autor que deseja ser original demais, criativo a ponto de não escrever para não soar repetido, dificilmente irá produzir literatura de qualidade.
Assim, talvez seja melhor relaxar na prisão do que tentar escapar dela.
Todo escritor ecoa outros escritores.
No fundo, a busca incessante pelo experimental é um tiro no pé.
Joyce, que é muito mais cultuado do que lido, está aí para não me deixar mentir.
Se você não deseja a compreensão do leitor, apenas que ele se jogue, está tudo bem.
Mas até desta forma você estará referenciando alguém, como o próprio autor de Ulisses e Dublinenses, que afirma ter lido cada linha de Flaubert, Ben Jonson e Ibsen, além de amar Shelley e Tolstoi.
Leminski, o poeta mais original nacional, era fã de Joyce.
Ninguém constrói uma obra consistente sem ingredientes tradicionais e sem a pretensão de algum dia se tornar farinha para outros escritores.
Imaginar que a literatura nasceu e irá morrer com você e, com isso, se considerar um escritor livre, é apenas mais um desejo do Ego, que costuma ficar mais inflado à medida em que se avança na carreira.
Por mais original que seja a criatividade empregada, alguém já passou por ela antes.
O que quero dizer é que a liberdade completa e irrestrita é uma falácia.
O que existe é uma roda, uma ciranda, onde estamos todos cirandando de mãos dadas.
Somos seres divinos e, por isso, a criatividade borbulha dentro de cada um, ávida para criar universos, mundos, filhos e livros nunca lidos.
Dos negócios à literatura, estamos sempre em busca da big idea, do pioneirismo, do first movement.
A procrastinação e os bloqueios decorrem das tentativas de fuga dessa prisão.
Você cava um túnel, serra uma grade e dá de cara com um muro já visto em algum lugar. E desanima.
Portanto, relaxe e use a criatividade para reciclar histórias.
Afrouxe as correntes e tome como base narrativas que já se provaram bem-sucedidas.
Sofrer para escrever o próximo grande legado literário original da humanidade é só mais uma crença limitante, que algum escritor amargurado do passado incutiu na sua cabeça.
Além de ser uma grande bobagem tentar superar Guerra e Paz (seja em qualidade, seja em tamanho), não há nada de original nisso.