Dia desses estava assistindo à série catalã Merlí, no Netflix, uma excelente recomendação para quem gosta de Filosofia, e me dei conta do quanto o mundo anda raso.
Temos esquecido que somos árvores, e deixado de questionar e procurar as raízes, e preferido nos guiar pelas folhas mortas espalhadas pelo chão.
Neste artigo, eu gostaria de filosofar com você sobre Falácias…
Se você escreve não ficção, vai precisar evitar as falácias na exposição de seus argumentos.
Se escreve ficção, seus personagens ganharão mais profundidade se você os mantiver mais distantes dos sofismas.
É claro que também podem ajudar na criação de personagens, sejam eles mocinhos ou vilões, que se se beneficiam dos silogismos aparentes.
Recomecemos com o enunciado…
O mundo anda cada vez mais raso.
O discurso virou um post nas redes sociais, um título de notícia, um slogan.
A verdade é que temos tomado partido, muitas vezes de forma ferrenha, com base em pouquíssimos caracteres.
Nosso pensamento tem sido guiado por um ou dois tuites, por ilusões simplistas.
Não há perguntas significativas.
Não há questionamentos intrínsecos.
O que responde é a manchete, o grito de guerra decorado, o que se vê de relance.
O que define é a foto, um centésimo do milésimo do espectro do momento.
Assim, temos vivido cada vez mais em um universo da mais ignóbil falácia: a simplificação.
Falácia é sinônimo de sofismo, recurso de má fé utilizado para defender algo que é falso e tentar confundir o interlocutor.
É a lógica infundada, quando você utiliza evidências exageradas, vagas, falsas ou ilógicas.
É claro que há também as falácias decorrentes da ignorância, conhecidas como paralogismos.
As falácias causam danos muitas vezes irreversíveis.
Uma frase do livro “Técnicas de Viver”, de W. Vieira resume bem a dimensão do estrago:
“Não há institutos de pesquisas no mundo capazes de avaliar a quantidade de infortúnio e delitos desencadeados entre os homens resultantes de impressões falsas proclamadas como verdadeiras”.
Com o objetivo de clarear as ideias, vamos dar um passeio mais detalhado pelo bosque dos 10 principais blábláblás humanos:
1. Apelar para a Ignorância
O apelo à ignorância é quando se transfere o ônus da prova para o interlocutor.
Geralmente, estes argumentos começam com “me prove” ou “me mostre” e partem da ignorância quanto à validade para estabelecer uma prova.
Um exemplo:
“Me prove que Deus não existe. Se você não tem como provar, é porque ele existe”.
2. Apelar para a Emoção
O apelo à emoção era uma das falácias mais criticadas pelo Dr. Spock, o cientista Vulcano e racional da série Jornada nas Estrelas.
É quando se recorre à piedade ou a outros sentimentos para tentar validar um argumento, embora a emoção não tenha relação com o próprio argumento ou com o assunto em si.
O apelo à emoção é usado como forma de persuasão ou intimidação, a pessoa precisa apoiar ou rejeitar com base em sentimentos e não em evidências.
“Coitado! Tirou milhões da pobreza e agora tem que se sujeitar a isto.”
3. Apelar para a Multidão
O Argumentum Ad Populum é uma maneira de tentar ganhar uma discussão com base na quantidade de pessoas que defendem uma causa.
Algo do tipo:
“Muitas pessoas pensam assim, então você também deveria pensar.”
4. Generalizar
A generalização é, certamente, a principal causa das guerras que assolam a humanidade.
O governo é isso, o povo é aquilo, os judeus fizeram isso, os palestinos fizeram assado, os homens, as mulheres, os brancos, os negros, os católicos, os evangélicos, os muçulmanos, os cientistas, a direita, a esquerda, e por aí segue nossa mania de generalizar.
Generalizar é lançar uma rede empírica para detectarmos aquilo que nos é diferente em um grupo, mas que não representa exatamente o pensamento de cada indivíduo daquele grupo.
É tomar o detalhe pelo todo.
Argumentos que utilizam “todos” ou “todo mundo” invariavelmente contêm generalizações:
“Todo político é corrupto”.
A argumentação generalista também pode partir da análise de uma situação particular para fundamentar uma conclusão geral, também conhecida como “generalização apressada” ou “falsa indução”:
“Meu irmão é ateu e é boa pessoa. Por isso, os ateus são boas pessoas”.
5. Pensar em Círculos
O argumento circular é o que tenta reafirmar uma posição usando termos diferentes.
Exemplo:
“Eu detesto ir à Academia porque eu odeio fazer ginástica.”
O “pensar em círculos” também remete a outra falácia, a repetição ad nauseam:
“Se seu pai fala tanto que sua mãe é mentirosa, então ela é.”
6. Reduzir as Opções
É o famoso uma coisa ou outra, sem que outras possibilidades possam ser consideradas.
“Ou você crê na Bíblia ou você é um herege.”
“Ou você apoia o PT ou você é um burguês da elite opressora.”
Também pode se valer da força, o Argumentum ad Baculum:
“Ou você encara desta forma ou pode esquecer o emprego.”
A redução das opções também pode ser contraditória ao estabelecer uma premissa com base em argumentos que se contradizem:
“Para serem livres, submetam-se ao que eu falo”
7. Meias Verdades
Uma meia verdade é quando se conta apenas uma parte ou metade da verdade.
Ocorre ao tentar persuadir escondendo elementos principais da informação.
Talvez seja uma das falácias mais difíceis de detectar, porque a parte verdadeira – possível de alcançar apenas com base em levantamentos estatísticos e comparações – fica oculta:
“É preciso acabar com a Lei do Desarmamento porque, desde que ela entrou em vigor, a criminalidade disparou”.
8. Testemunho Anônimo ou Autoritário
O testemunho anônimo ocorre quando a argumentação se baseia em afirmações de fontes não citadas:
“Os cientistas afirmam que os olhos emitem radiação magnética”
O testemunho autoritário, ou Magister Dixit (“Meu mestre disse”), apela a alguma autoridade reconhecida para comprovar a premissa:
“Foi Jesus quem disse isto, você tem que acreditar”
Este recurso é muito utilizado nos argumentos de egocentrismo ideológico:
“O capitalismo é o ideal, porque Adam Smith afirma que…”
9. Simplificação
Simplificar é transformar tópicos complexos em uma questão simples, algo que definitivamente não são.
A simplificação é uma fonte constante de conflitos porque é utilizada para impor e convencer, quando, na verdade, deveria ser usada para expor e debater.
Vou dar um exemplo polêmico:
“A Bíblia é a Palavra de Deus”
Veja bem, não há problema algum em “expor” tal afirmativa.
O problema é quando ela é imposta.
Para ser imparcial, outro requisito da Verdade, cito outros exemplos:
“Allah é o único Deus”
“Israel é o Povo de Deus”
São frases muito utilizadas na imposição de Universos coletivos sobre outros Universos Coletivos.
Poucos vão a fundo na compreensão de seus significados.
Tomemos o primeiro exemplo, “A Bíblia é a Palavra de Deus” para um exercício de aprofundamento.
Bíblia é uma palavra grega, o plural de Biblio, ou seja, livros.
Que livros?
Livros escritos em diversas épocas por homens supostamente inspirados por um “Deus”.
E eis que surge um novo problema que poucos tentam ir mais além por conta dos dogmas e imposições do meio religioso em que cresceram.
O termo “Deus” foi empregado pela primeira vez por São Jerônimo, há pouco mais de 1500 anos, na primeira tradução dos “Livros” do hebraico para o Grego.
Não se sabe lá os motivos, mas o velho Jerônimo resolveu usar Theos – que vem de Deiwos, de origem proto-hindo-europeia, e que significa Brilhante ou Celeste, e se tornou Dei no Latim – para substituir todos os nomes referentes à “Divindade” no Antigo Testamento, o Tanach hebreu.
Assim, todas as menções a Ehyeh, o Tetragrama, Elohim, El, Shaddai e Adonai, entre outras, foram substituídas simplesmente por “Deus” ou Senhor.
Deixaram seus aspectos energéticos para “antropromorfar” algo que é visto por muitos ainda como um velhinho de barbas brancas que distribui benesses para quem é bom e pune quem é ruim.
Com isto, a profundidade do mar foi perdendo suas nuances para se tornar apenas um córrego quase seco, um slogan, cujo principal objetivo é o mesmo de seus similares na propaganda:
Convencer e, principalmente, vender.
Portanto, uma abordagem, menos simplista (vá mais fundo e não se deixe convencer por mim) é de que a Bíblia é um conjunto de livros (com conhecimentos extraordinários, é bom ressaltar!) escritos por homens inspirados por diversos “níveis de consciência” em diversos contextos da história da humanidade.
Mas tome cuidado, o oposto da simplificação é a verbosidade.
É quando se tenta convencer o interlocutor através do discurso prolixo e complexo, apresentando uma grande quantidade de informações e fontes.
A argumentação até soa plausível, que foi resultante de uma pesquisa profunda, porém, devido à complexidade e do trabalho que dá para checar cada informação, muitos acabam aceitando sem contestar.
10. Invenção de Fatos
Esta talvez seja a falácia mais criminosa de nossos tempos.
Nas redes sociais, é preciso tomar cada vez mais cuidado com as notícias e fontes antes de sair compartilhando mentiras.
A invenção de fatos é muito utilizada na desconstrução de adversários políticos, por exemplo.
Pode ser usada também para construir imagens de pretensas “celebridadades”ou mesmo de políticos.
Consiste basicamente em mentir ou formular informações imprecisas:
“A causa do desemprego é o PT”
Também pode ser utilizada ao relacionar duas coisas distintas sem uma evidência forte para dar sustentação. Por exemplo:
“A causa do câncer é o consumo de carne ou pode ser a poluição”
Um sofisma pode se tornar extremamente prejudicial quando somado ao recurso da repetição.
A repetição de falácias é utilizada para alimentar o tico e o teco dos eleitores desavisados, para vender produtos e para convencer quando não se tem argumentos e evidências sólidas.
O chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, resumiu bem este conceito em sua célebre frase:
“De tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade.”
O número de falácias é bem maior do que as 10 apresentadas neste artigo.
Talvez um dia eu me aprofunde nelas em um e-book.
Por enquanto, fique atento às falácias em seu conteúdo ou ao argumentar com alguém.
Para terminar, parafraseio Merlí, o filósofo do seriado que citei no começo do artigo:
“Se as coisas são assim, não significa que não possam ser questionadas”.
Se você quer se aprofundar em técnicas de argumentação, conheça o livro “Escrita Hipnótica – A Arte de Escrever Textos Persuasivos e Contar Histórias Que Instigam“.
Você tem exemplos de outras grandes falácias?
Deixe nos comentários…
Desvende os programas persuasivos da mente, que governam o comportamento humano, e que podem ser usados para direcionar, entreter e vender.
6 comentários em “Simplificação e Outras Falácias”
Eldes Saullo você é uma evidência de que o Homo sapiens sapiens já não representa a sub-espécie que caracteriza os “seres humanos” modernos. Quando o homem moderno aplica sua sabedoria, ele demonstra “prudência” que é mais do que saber. Tem haver com a atribuição de sentido para com o que se sabe. Um bom sinal de que a humanidade segue a caminho da iluminação! Sabedoria aplicada é liberdade ampliada! Parabéns pela aula-reflexão!!!
“Homem não presta.” Essa se enquadra duplamente em ‘Generalizar’ — no sentido de conclusão geral e de divisão por gênero. Como se realmente houvesse um gênero de ser humano mais evoluído que outro…
Lembrei de uma que eu ouvi: homossexualidade é perversão sexual. Hum….com base NO QUÊ chegou-se a essa conclusão?
“Ser mãe é padecer no paraíso”. Essa é uma frase que abriga uma enorme contradição. Padecimento nos reporta a interpretação de dor, sofrimento. Paraíso é utópico, dependendo do conceito de cada um. A referência é bíblica, descrevendo um local questionável que, supostamente, ofereceria a felicidade plena, a pureza, a inocência.
Repete- se a frase sem raciocinar, ignorando a falta de coerência.
Acreditar em falácias é descartar o ato de raciocinar sobre o que lemos e ouvimos. Preciso é estarmos atentos e exercitar nossa capacidade racional.
A verdade é que praticamente 70% do que é dito na comunicação humana são falácias, sendo uns 30% disseminadas pela própria mídia, principalmente se for assuntos relacionados a economia (empreendedorismo e mercado de trabalho) ou relacionados a politica.
Excelente exemplo de factóide o seu comentário. Parabéns!!!